quinta-feira, 17 de junho de 2010

Bichos...



Por Marcelo Canellas
Repórter

A equipe estava sem fome, era cedo, bem antes de meio-dia.
Mas tínhamos de almoçar ali mesmo, num restaurante às margens da rodovia q liga São Paulo a Cotia, pq nosso compromisso no Rancho dos Gnomos, onde conheceríamos um santuário de gdes felinos africanos, seria por volta das 13h. O garçom não conteve a curiosidade: "Vcs são do Globo Repórter? E é sobre gente ou sobre bicho?".
Meu primeiro ímpeto foi dizer q "animais abandonados" era o tema do nosso programa. Mas a pergunta do garçom foi como um sopro de lucidez entrando numa frincha da percepção, elucidando o q estava inteiramente oculto. Então respondi, convicto: "É sobre gente, amigo. É sobre a natureza humana".
À medida q fomos filmando pássaros c/ asas amputadas, leões c/ garras arrancadas, chimpanzés c/ presas serradas e todo tipo de seqüelas da violência contra os animais, fui me convencendo de q eu estava certo. Estávamos fazendo uma reportagem sobre o qto as pessoas, podem negar sua própria humanidade. E tb sobre como podem honrá-la ao amar os animais.
No longínquo ano de 1206, em pleno vigor do espírito feudal q punha suseranos e vassalos em esferas incompatíveis de convivência, um certo Francisco de Assis abandonou os castelos q freqüentava, desfez-se de suas posses, despiu-se até mesmo de suas vestes e foi viver entre os pobres. Poeticamente, chamava o sol de irmão e a lua de irmã. E dizia q nada define melhor a condição humana do que a capacidade de amar os bichos. Não é preciso ser religioso ou acreditar em São Francisco de Assis p/ saber, mesmo 801 anos depois, q o q nos torna diferentes, o q nos torna especiais, o q nos torna magnânimos em comparação c/ as outras formas de vida, é a nossa capacidade de amar.
A tolerância, a generosidade, a idéia de q temos um futuro comum neste planeta são princípios universais conquistados pela Humanidade em sua dura luta contra a barbárie. Não gostamos da solidão, não queremos a dor, não toleramos a humilhação. Se somos egoístas, se ferimos e matamos, se submetemos nossos semelhantes ao vexame da miséria e da pobreza, estamos em desacordo c/ o esforço civilizacional da convivência. Civilizado convive, respeita, tolera. Os bárbaros subjugam.
Vimos leões entrevados pelo confinamento, chimpanzés esquizofrênicos e atormentados por anos de espancamento, araras cegas, onças mutiladas e todo tipo de sofrimento e privações. Parece a vitória da barbárie. Não é. Pq vimos tb exemplos de generosidade e dedicação. A grandeza de saber amar e proteger seres vivos q, como nós humanos, tb sentem frio, dor e medo, ajuda a recuperar a humanidade q ainda há em cd um de nós. Basta ver o q o Rancho dos Gnomos fez c/ o leão Will. Abandonado por um circo e tendo vivido a vida inteira trancafiado, Will pôde, aos 13 anos de idade, pisar na terra pela primeira vez. Esfregando as patas na grama, no húmus, na energia mineral da natureza, livre da superfície inócua do chão da jaula, Will nos enche de ternura, nos entope de compaixão e, portanto, nos ajuda a salvar um pouco da humanidade que tínhamos perdido.

Olhei p/ os animais abandonados no abrigo... os renegados da sociedade humana.
Vi em seus olhos amor e esperança, medo e horror, tristeza e a certeza de terem sido traídos. Eu me revoltei e rezei:
- "Deus, isso é horrível! Por que o Senhor não faz nada a respeito?"
E Deus respondeu: -"Eu fiz. Eu criei vc."

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